Opinião

“Você não vê nada!”

Tazuary Nkeita

Jornalista e Escritor

Manhã de segunda-feira, dia 01 de Abril. É hora de ponta. À noite choveu bastante e as ruas de Luanda assemelham-se a extensos lençóis de água.

14/04/2024  Última atualização 07H35
É também o dia das mentiras e, por isso, a história a contar é suspeita. Nada posso fazer contra quem duvidar...

Aconteceu eu virar à direita pela Praça da Independência e seguir em frente rumo à rotunda do Largo Primeiro de Maio. Mas, num olhar de águia, algo despertou subitamente a minha atenção. Apesar da grande quantidade de viaturas, a primeira das três faixas, à esquerda, estava quase vazia, tanta era a água submersa.

Compreendi porquê. A água estagnada era tanta que ninguém se atreveu a meter o carro em risco. Carros e carros que são bens de luxo e a causa de cegueira em muitos. E todos se apertavam, entre as duas faixas sem água!

Estou ao volante do meu velho Gasolina 4x4 Sport, e nada tenho a temer. Não o comprei num dia de mentiras e, por isso, acreditei no vendedor, quando me disse:

"Tem aqui um carro a todo-o-terreno e para toda a vida!, e já lá vão 30 anos!

Agora, estou na faixa cheia de água. Não há peões, à minha esquerda tanta é a água acumulada. Acelero  com precisão e chego tranquilamente à rotunda do Primeiro de Maio, onde surpreendo um velho ilustre desconhecido, que mais assustado do que molhado, me passa uma inesperada repreensão ao ver-me antes da passadeira:

"O senhor vai molhar as pessoas!”, grita ele, amedrontado.

"Desculpe, mas vi que não havia ninguém...!”, respondi. E era verdade. A água era tanta, que não se via ninguém, nem circulava nenhuma alma pelas laterais. Repito, não circulava absolutamente ninguém junto àquela faixa, aliás, quase vazia até à passadeira, como descrevemos.

Mesmo assim, levei uma severa repreensão daquele desconhecido: "Você não viu, nada!”, repetiu ele, ainda em choque, antes de eu seguir em frente.

E lá fui, depois deste simples ralhete. "Você não viu, nada! Você não viu...”, gritava ele.

O que responder àquele homem, distraído, que certamente trazia o peso de mil pensamentos e desgostos na mente?…

Calei-me. E foi em completo silêncio que dei razão ao pobre homem, quando me recordei do que escreveu José Saramago  no seu "Ensaio sobre a cegueira”: em terra de cegos, quem vê sente medo...

Por isso, o cego era eu que "Não viu nada. Absolutamente nada, e por isso não tem medo da água!”. Ele não confiou na perícia de quem conduzia o Gasolina Sport, e teve medo de ser molhado. Aos seus olhos, só um cego poderia meter aquele carro no lençol de água quando todos os restantes fugiam… O "Você não viu nada”, significou o mesmo que "Você é mais um zero à esquerda, não viu a faixa cheia de água!” Na opinião dele, andamos em carros de luxo e estamos todos cegos. Mentira?

Mas, era Dia 01 de Abril e tudo era suspeito...

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