Os rumos para desenvolvimentos, sejam quais forem, são, inevitavelmente, feitos de avanços e recuos, nem sempre proporcionais, proporcionadores de estados de alma opostos - alegrias e desânimos -, em qualquer dos casos, porém, inevitavelmente exagerados e inevitáveis.
Em tempos, a sociedade angolana, particularmente na sua versão luandense, foi chocada com a notícia da morte, por linchamento, do jovem que em vida atendia pelo nome de Nzinga da Silva Miguel, vulgarmente conhecido por Caleb. Foi uma cena cruel, protagonizada por populares que o confundiram com um gatuno de telefones.
Segundo relatos, a vítima procurava cobrar uma dívida a uma jovem que era sua cliente numa máquina de jogo de apostas e, diante da relutância desta, ele tentou confiscar o telefone da mesma, acção que deu azo para que populares dos arredores da casa da cliente, atendendo ao grito de socorro dela e da mãe, pegassem em pedras, paus, ferros e toda a sorte de objectos contundentes, fazendo justiça por mãos próprias.
Este facto, apesar de já ter ocorrido há cerca de dois meses, deve levar-nos a reflectir sobre os casos de justiça por mãos próprias que, amiúde, vão acontecendo na nossa sociedade, sobretudo nas periferias das grandes cidades, com destaque para a cidade de Luanda.
É curioso e sintomático que, diante do que aconteceu com Caleb, tenha havido um sentimento de revolta por parte de grande parte da população (não fosse ele em vida um músico gospel), com destaque para os jovens, chegando a haver sugestões no sentido de que, pasme-se, a justiça fosse feita pagando-se pela mesma moeda, ou seja, por mãos próprias.
A justiça por mãos próprias, se é que a isto se pode chamar justiça, é geralmente praticada pelo uso da violência física que a enaltece e exalta ou, em suma, a glorifica.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) define a violência como "o uso intencional de força física ou poder, ameaçados ou reais, contra si mesmo, contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou tenha grande probabilidade de resultar em ferimento, morte, dano psicológico, mau desenvolvimento ou privação”.
Quem faz justiça por mãos próprias sabe, a priori, qual será ou quais serão os resultados da sua acção, que é causar danos à vítima.
A reflexão que se impõe é que, pela frequência que esses actos vão ocorrendo, a sociedade e principalmente o Estado não podem continuar impávidos e serenos, permitindo uma normalização do fenómeno, causando dissabores a várias pessoas e seus bens. A ciência social convoca geralmente o sociólogo alemão Max Weber para considerar o Estado como o detentor do monopólio da violência legítima.
O Estado moderno, desde as concepções contratualistas de Jean-Jacques Rousseau, engendrou instituições apropriadas para administrar a justiça, ainda que ela seja entendida apenas na perspectiva da aplicação do direito.
A Polícia, os tribunais e outros entes correlatos são aparelhos do Estado vocacionados para dirimir conflitos, pela aplicação da lei.
Quando um cidadão ou grupo de cidadãos se arroga o direito de aplicar a justiça segundo a sua iniciativa privada ou particular, segundo os seus próprios critérios, tal cidadão ou grupo de cidadãos invadem um espaço sagrado do Estado, desrespeitando-o, vilipendiando-o, portanto, profanando-o.
Então, o Estado, "strictu sensu”, aquele que tem o exercício do seu poder, deve actuar com os meios ao seu dispôr para a inversão da situação. Os aparelhos repressivos do Estado devem ser mobilizados para o efeito, mas também os aparelhos ideológicos, principalmente para acções de natureza preventiva, logo, pedagógicas.
A desestruturação de famílias, a forma como é exposta e até enaltecida a violência nos meios de comunicação social, quer os mais convencionais quer os modernos com realce para as redes sociais e demais plataformas de comunicação digital, as desigualdades sociais e a falta de oportunidades, o uso excessivo de bebidas alcoólicas e de outras drogas, o desejo de aceitação junto dos pares são, dentre outros, factores que se podem associar ao aumento dos casos de violência.
E muitos desses cultores da violência são tidos por vezes como heróis, sentindo-se assim legitimados e encorajados a persistir nessa prática. Há, por vezes, no seu meio de actuação, fraca ou nula reprovação social.
Um telefone não pode justificar o linchamento de um jovem de 28 anos, seja que antecedentes comportamentais ele tenha. Há que se trabalhar mais seriamente na (re)significação do valor da vida humana, através de uma pedagogia voltada para os valores morais e cívicos condizentes com uma sociedade de paz, de justiça, de liberdade, de fraternidade e progresso.
* Sociólogo, docente e investigador no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED – Luanda) e investigador no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto.
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